Experimentação Médica em Seres Humanos

O exercício da medicina experimental em seres humanos representa indiscutível necessidade que decorre do caminho que ainda nos aguarda. Ele nasceu da obrigatoriedade do conhecimento para evolução das medidas protetoras e cresceu com o próprio crescimento destas. Como já afirmado em determinadas ocasiões "antiético seria não realizar a investigação".

A atividade enfrenta, entretanto, como é evidente, limites estabelecidos pelo obrigatório respeito aos examinandos e que não devem ser ultrapassados, seja por entusiasmo ou por curiosidade, seja por vaidade ou autopromoção.

Essa responsabilidade dos pesquisadores felizmente vem sendo exaltada agora, em numerosas ocasiões, por determinações governamentais e em congressos e reuniões.

De forma sintética podemos recordar algumas etapas. As atrocidades nazistas trouxeram o código de Nuremberg (1947) que já estabelecia uma disciplina básica de comportamento. Depois, a Declaração de Helsinque (1964), que vem atuando como o documento mais expressivo, revisto várias vezes até em Veneza, em 1986. Ao mesmo tempo, resoluções ministeriais, associações médicas e comitês locais disciplinaram as atividades experimentais em grande parte do mundo, obtendo-se então, em 1982, as Diretrizes Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos. Entre nós já ocorreram Resoluções do Ministério da Saúde, sendo uma delas homologada em 1996 pelo prof. Adib Jatene, então Ministro de Estado.

Recentemente, vêm surgindo no Brasil numerosas publicações especializadas. A Revista do InCor já publicou (1997) artigos sobre aspectos legais e humanos; eu também já analisei o assunto em Congresso Católico (1967) e em livro de colaboração (1983) coordenado pelo prof. Ernesto Lima Gonçalves; e certas afirmações atuais reproduzem parágrafos antigos. Como exemplo final destaco a obra recente, pesquisa médica – A Ética e a Metodologia, de Sonia Vieira e William Saad Hossne, autores credenciados por trabalhos anteriores que fornecem um texto básico, de consulta obrigatória para todos os pesquisadores.

A análise das ocorrências nos recorda que na medicina atual agem medidas em provável benefício dos próprios doentes utilizados ou em prol da coletividade e que, nestas eventualidades, avultam os princípios de respeito humano.

No curto espaço desta coluna não discutirei as clássicas normas éticas e disciplinadoras: categoria do pesquisador, escolha dos examinandos, catequese de voluntários, consentimento esclarecido dos selecionados, direitos dos pacientes e papel de comissões locais de vigilância. Farei apenas análise de ocorrências habituais na vivência clínica, agrupadas de acordo com suas modalidades. Não estudarei também as técnicas de avaliação de novas drogas pôr rotina já estabelecida e as intervenções sobre nascituros algo afastados de nossas cogitações.

a) A utilização de pessoas normais para decisões sobre a validade de métodos propedêuticos e sobre os limites da normalidade de determinados valores é atitude que deve ser aceita, mas realizada com consciência. Ela é fundamental para o conhecimento de dados essenciais. Um exemplo, em cardiologia, é o do emprego do cateterismo cardíaco. Curiosamente, o observador pioneiro, Forssmann realizou em si próprio o ato inicial, em 1929, mas ulteriormente, Cournand e Rangers (1941) iniciaram a obtenção das características da normalidade.

b) Finalmente, a inconcebível atitude de transplante ou inoculação de material mórbido (células cancerosas, agentes infecciosos) em determinados tipos de receptores: prisioneiros, débeis mentais, idosos asilados, crianças de orfanatos, portadores de doenças graves e crônicas, doentes em fase terminal. As justificativas seriam as respostas a interrogações sobre problemas de etiologia, de patogenia, de terapêutica.

Dentre as múltiplas manifestações sobre atividades antiéticas merece consideração particular a análise do prof. Henry Ceecher, da Harvard Medical School, publicada no New England J. Medicine, em 1966. Nos exemplos mencionados, comparece um, particularmente doloroso, cuja lembrança permanece em meu espírito desde o trabalho anterior (1983). E transcrevo literalmente o que escrevi na ocasião.

"Tratava-se de transplante de melanoma de uma enferma à sua mãe, receptadora consciente e voluntária ( se é que este qualificativo pode ser aceito), com a finalidade de se conhecerem ‘aspectos imunitários’ e de se verificar a possibilidade de que ‘anticorpos antineoplásicos pudessem ser úteis na terapêutica do câncer’. A paciente já gravemente enferma, em estado terminal, faleceu no dia seguinte ao do transplante e a mãe ao fim de 451 dias por metastático".

São medidas revoltantes por razões óbvias e que atentam contra todos os direitos humanos. Foi, sem dúvida, a intolerável frieza dessas atitudes que, nos últimos anos, vem exigindo das instituições normas disciplinares mais rígidas. Como disse o dr. Siegler, diretor do Centro para Ética em Clínica Médica, da Universidade de Chicago, "a medicina reconhece erros passados, estudou-os e realmente trabalhou para colocar sua casa em ordem".

A rápida viagem pelas situações analisadas nos revela duas situações preocupantes. Por um lado, a leviandade de certas atitudes, nas quais a crença em bons resultados, apenas previstos pelo estado do momento, permite o desprezo de possíveis variáveis modificadoras das ocorrências e que deveriam ser cogitadas como possibilidades indesejáveis. E, por outro, os comportamentos indignos, nos quais as ações são exercidas sem obediência aos preceitos de respeito e de consciência. A mensagem de esperança aos enfermos não pode ser construída sobre atividades que representam afrontas.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

Voltar