Armand Trousseau e a Plenitude Clínica
Em nossa recordação dos que ainda vivem depois de mortos encontram-se particularmente os que forneceram idéias originais ou novos caminhos. Nessa memória, contudo, devem permanecer também os que se destacaram pela elevada categoria com que atuaram em suas profissões.
Na coluna de hoje recordo um grande médico francês que se distinguiu por três aspectos significativos: o fecundo exercício profissional, o reconhecimento da necessidade de formação cultural e a serenidade com que previu e tolerou a morte.
O CLÍNICO ¾ Trata-se de Armand Trousseau (1801-1867) que exerceu a medicina em Paris e dominou a clínica francesa durante o século XIX. Participou do ensino a partir de 1839 e assumiu a Cátedra de Clínica Médica no Hôtel-Dieu local em 1852.
Em período no qual a clínica atuava por palavras eloqüentes mas ocas de sentido, ele a trouxe ao terreno da objetividade, com a busca de diagnósticos exatos e de tratamentos adequados. E obteve reconhecimento universal, como profissional, como professor, como orientador. Viveu para seus doentes, sabendo ouvir sem fadiga e medicar sem presunção, clientes chegados de todo o mundo. Foi também dedicado mestre, à beira dos leitos e nos anfiteatros, como competente orador.
Destacou-se por publicações esclarecidas e orientadoras sobre numerosas enfermidades, dentre as quais a difteria, a asma, a febre tifóide, a moléstia de Basedow, a cólera infantil, a icterícia, a gota, a tuberculose da laringe, as febres eruptivas, as infecções puerperais, as fissuras anais. Por outra, foi o iniciador, em Paris, de manobras invasivas como a traqueotomia, a toracocentese. Em relação ao estado mórbido do aparelho circulatório, desejo salientar a descrição magistral da angina de peito (considerada apenas como "nevrose singular), a observação da insuficiência valvar aórtica como "a mais grave das lesões dos orifícios", a menção das dificuldades diagnosticas quando de processos embólicos, a profunda análise das afecções venosas periféricas, a avaliação do papel do reumatismo poliarticular agudo na eclosão da "endocardite ulcerosa".
Sua ampla casuística foi minuciosamente exposta em obra capital, a CLINIQUE MÉDICALE de L’HOTEL-DIEU de PARIS, reeditada várias vezes, mesmo após a sua morte. A partir da segunda edição, com a colaboração de Blondeau, de Dumontpallier e de Peter. A que possuo é a décima-primeira de 1913, em três volumes
O MESTRE — É na INTRODUCTION desse livro que se observa a presença do orientador, credenciado pela experiência e pela cultura. E é ela que justificou a escolha desta coluna. Em meu exemplar estão presentes 42 páginas inolvidáveis.
Várias das observações nos parecem evidentes, hoje, mas devem ser avaliadas perante as características da época. Elas são expressivas, ricas em informações, em conselhos, em orientações, em advertências, em análises metodológicas. Tão amplas que dificultam uma síntese e eu a realizo consciente de meus limites.
De início, conselhos aos estudantes para freqüência, já inicial, aos hospitais, para que a mera observação dos enfermos, embora restrita nessa face do aprendizado, seja permanente nos "tesouros da memória". Ressalta o valor de se ler em seus semblantes a gravidade da afecção e a categoria limitadora que ela apresenta.
Discute, depois, a importância das "ciências acessórias", em particular a da química; não despreza o seu auxílio, mas condena o exagero. Encareceu o conhecimento sobre a "evolução das doenças" considerando-o como o que avalia "a mais importante, a mais capital das noções para o prático". É com a "ajuda dessa bússola" que se avança no "estudo tão difícil da terapêutica". A experimentação é legítima mas dentro de limites. Reconhece a presença do empirismo nos tratamentos, destacando porém, com lucidez, que "se o fato primordial é puramente empírico, as conseqüências decorrem da inteligência do médico, que as sabe encontrar, pois o médico inteligente observa um fato que outros não enxergam".
Em páginas seguintes discute três aspectos, ainda hoje atuais. Em primeiro lugar, que o professor de clínica possui missão diversa da do professor de anatomia patológica. Este observa fatos objetivos que podem ser avaliados metodicamente, ao passo que aquele atua de modo diferente, com observações nem sempre tão claras, passo que aquele atua de modo diferente, com observações nem sempre tão claros, por razões que expõe e que são evidentes. Outra ocorrência refere-se ao papel do sexo dos enfermos quando em exame. Perante as mulheres "o médico deve se lembrar que possui irmã ou filha" e que "jamais a aproximação deve tomar as aparências de uma curiosidade culposa". Em terceiro lugar lembra que os doentes das enfermarias são, em geral pobres, induzidos a esses locais pela necessidade e pelo infortúnio. Eles exigem atenção e respeito.
Prosseguindo em seus conselhos avalia as condições da atuação médica perante a nosologia, recordando que "a sistematização das enfermidades deve preceder a clínica e a terapêutica". Adverte, entretanto, que essa ocorrência, mesmo necessária, sofre injunções limitadoras, na prática, por razões compreensíveis. Sugere, com inteligência, que o clínico "esqueça a nosologia" e permaneça junto ao leito do enfermo "estudando cada doença e também a mesma afecção em cada enfermo", como "o naturalista estuda uma planta". Encarece o valor da observação pessoal perante as doutrinas ensinadas. E acentua que, desde jovem, procurou essa independência mental, apesar da evidente subordinação a certas normas gerais.
Os conselhos prolongam-se através das páginas sempre com lógica. Aprecia os "métodos numéricos" de análise, assim a estatística em seu relativo valor.
Esta será sempre utilizada pelo maior número de observações e permitirá a recusa de "detestáveis formulações que devem ser banidos da linguagem médica": "qualques fois, souvent, le plus souvent, généralement". Ressalta entretanto, a possibilidade da revelação científica pela observação de um fato isolado, evocando as verificações de Galileo na descoberta do pêndulo, as de Torricelli, com o mercúrio imerso em água, as de Lavoisier com o peróxido de mercúrio.
Quase ao final da Introdução aborda, com acuidade, as relações entre arte e ciência, analisando a medicina como "método"e como "arte aplicada". A modalidade científica e a arte excluem-se reciprocamente, mas não a atividade clínica que pode ser vista como arte. Sintetiza em três linhas admiráveis uma afirmação concludente: Toute science touche à l’art par quelques points;tout art à son cotê scientifique: le pire savant est calui qui n’est jamais artiste; le pire artiste est celui qui n’est jamais savant.
A DOENÇA E A MORTE — Nas linhas finais do texto fornece-nos uma advertência que pode ser projetada em seu sofrimento pessoal: "é necessário não recuar diante da morte, quando ela vos ameaça; pois a morte conquistada no conjunto dos perigos de nossa profissão fará com que vosso nome seja pronunciado com respeito".
Tendo descoberto relações entre as manifestações de flebopatias e o câncer do estômago fez diagnóstico exato de seu estado por afecção na perna esquerda. Em início de 1867 afirmou a seu aluno Peter: "Estou perdido". Essa dolorosa previsão confirmou-se mas não o deprimiu e ele nada cedeu à doença.
Durante cerca de seis meses manteve-se sereno perante o esperado desgaste orgânico. E conservou sua clínica, com recepção final dos clientes em seu lar, dadas as dificuldades em transporte. Às interrogações aflitas das mães e dos próprios enfermos respondia de forma impessoal, com orientações e conselhos que nunca se ausentaram.
Recebia amigos e doentes quase sem queixas. Apenas nos períodos finais, perante dores insuportáveis solicitou injeções de morfina, em doses mínimas.
E assim permaneceu até o fim, como exemplo de dignidade, de competência e de dedicação aos enfermos.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt