A Medicina Em Salerno Medieval
O tema de hoje já foi exposto por mim em artigo publicado no Boletim do Corpo Clínico do Hospital das Clínicas em junho de 1992. O texto atual fornece dados complementares que justificam a publicação.
Na coluna do mês passado acentuei que o desenvolvimento da medicina, embora modesto, prosseguiu no decorrer da Idade Média e que essa ocorrência já era nítida em seus séculos iniciais. Para essa evolução contribuíram, sem dúvida, o declínio de suas atividades relacionadas aos conventos e seu avanço no terreno leigo, embora não afastado de todo do trabalho de Monte Cassino.
Nessa fase, promissora, nasceu e cresceu a famosa Escola de Medicina de Salerno, que forneceu ensinamentos durante séculos.
A INSTITUIÇÃO ¾ Ela surgiu no pequeno porto, ao sul da Itália, no início do século IX, como a Scuola Medica Salernitana, sob condições ainda incertas. Uma lenda atribui sua constituição a quatro mestres de origens diversas e que trouxeram suas peculiaridades: Salernus, com a cultura latina, Ponto, com a grega, Adela, com a árabe e Helino com a hebráica. A cultura latina, naturalmente autóctone, a grega em suas recordações de um passado ainda ligado à longa ocupação bizantina, a árabe decorrente das incursões dos muçulmanos então dominadores da Sicília e a hebráica pela tradução latina de textos expressivos.
Apenas como hipótese pode ela ser admitida ainda hoje. Não parece, entretanto, ter se originado de improvisação gratuita, mas provocada por uma oferta de conhecimentos especializados dos ambientes mais respeitados, que, teriam então estruturado a Escola. Esta manteve seu caráter leigo, embora com sacerdotes entre mestres e alunos.
Com as características de seu trabalho e de seu ensino ela notabilizou a pequena cidade, que se tornou conhecida como a Civitas Hippocratica, a cidade de Hipócrates, ou seja, a Cidade da Medicina.
ATIVIDADES ¾ A Escola manteve atividades no exercício prático, em razoáveis buscas clínicas e, particularmente, no ensino, com estabelecimento de adequadas normas de conduta, embora ricos em afirmações divertidas como veremos adiante. Sua maior influência exerceu-se no século XIII, mas persistiu até fins do XIV.
E vários dos mestres foram famosos. Nesta síntese desejo recordar apenas alguns e por razões diversas.
Em seu período de maior brilho viveu Constantino, o Africano, nascido em Cartago e personalidade curiosa. Foi comerciante convertido ao cristianismo e mais tarde dedicou-se à medicina. Possuía amplo conhecimento de línguas orientais e foi tradutor de textos gregos e árabes. Reconhece-se hoje, entretanto, que as versões foram muitas vezes grosseiras e pouco fiéis, tendo ainda publicado como originais trabalhos de outros. Exerceu porém grande influência sobre a comunidade. Após anos de atividade tornou-se monge beneditino no Monastério do Monte Cassino, onde faleceu em 1087.
Ao seu lado, entre muitos mestres, desejo destacar uma mulher médica, cujo nome pode ser aceito como Trotula e que escreveu um livro sobre Obstetrícia.
Os trabalhos da Escola abrangeram aspectos das afecções de quase todos os órgãos do corpo, inclusive de territórios delicados como o ocular. A medicina sexual era cogitada, com a proposta de drogas abortivas, afrodisíacas e, preventivas da gravidez.
As correções cirúrgicas eram modestas, em parte pela categoria dos estudos anatômicos, realizados principalmente em porcos, considerados como animais que "internamente", aproximavam-se dos homens. Admite-se que a Escola utilizava-se da Anatomia do Porco escrita por Kapho. Deve ser destacada contudo a atividade operatória de Rogério (cerca de 1170) sensato em prescrições de trepanações, de fraturas do crânio, de manuseio do câncer do útero e do reto e também nas cuidadosas remodelações de vísceras no abdome após ferimentos profundos.
Uma ocorrência que merece reconhecimento é a da terapêutica das psicoses. Além de medidas clássicas (medicamentos e sangrias) eram também utilizadas palavras de amparo e música.
A OBRA ORIENTADORA ¾ A fama e a influência da Escola fundamentaram-se essencialmente sobre uma atitude orientadora, que se consolidou com a publicação de um conjunto de preceitos de saúde sob a forma de poema: o Regimen Sanitatis Salernitanum.
A obra abrange centenas de versos escritos em latim. E foi modificada, alterada, deformada através do tempo, em edições que mantiveram o espírito original. Sua divulgação tornou-se excepcional, fornecendo regras de comportamento a todo o mundo culto, como texto básico de medicina, até o início do período da Renascença.
Deve ser acentuado que não era um compêndio organizado em normas seqüentes e lógicas mas um conjunto de conselhos e de advertências, atraentes e de fácil utilização. Vários são satisfatórios ainda hoje podendo atuar e orientar. Outros são ingênuos, simplórios, inconsistentes e provocam surpresa e diversão. Abordam hábitos de vida, princípios higiênicos, amplas prescrições dietéticas e algumas normas terapêuticas.
A obra que possuo é edição italiana moderna da tradução de Fulvio Gherli (1733) e conta com 109 estâncias. O poema inicia-se com o aviso: Di Salerno la Scuola al Re Britanno Scrive: se vuoi tua sanità perfetta ed immune serbar da tutti i mali ...... . Aconselha o afastamento da ira e das paixões, a bebida apenas com moderação, a sobriedade nas refeições, a movimentação após a alimentação, a conservação do intestino livre. E a estância termina com previsão otimista: Cosi osservando ben questi precetti lungamente godrai vita felice.
Na estrofe seguinte hábitos de higiene que podem assim ser expressos:
" Ao deixar o leito lave as mãos e os olhos com água fresca; movimente e distenda um pouco seus membros com ligeiro passeio; penteie os cabelos, escove os dentes; isto conforta o cérebro e, além disso, fortalece os membros".
Ao longo do texto são fornecidas regras minuciosas para o consumo de numerosos alimentos e de bebidas: peixes, aves, carnes, leite, pão, manteiga, queijo, frutos, condimentos, vinho, cerveja.
E várias afirmações nos divertem: para os tísico o leite de cabras sadias, o de vaca e de ovelha e também o de camelas, sendo mais nutritivo o de jumenta. São "proveitosos à natureza" os ovos frescos, o caldo gordo com farinha pura, o vinho tinto. Este, aliás é aconselhado com insistência: "Os melhores vinhos geram humores melhores, o vinho deve ser límpido, idoso, delicado, amadurecido", "os vinhos brancos e doces são os que mais engordam" .
Por outra, alguns conselhos e advertências são muito curiosos: a carne de porco sem vinho é inferior à de carneiro, mas com vinho seria "alimento e remédio; "o uso de uma noz é salutar, mas a ingestão de duas é nociva e a de três significa a morte". E ainda ocorrências fisiológicas, sendo "coração digerido tardiamente", "o pulmão com facilidade", e o melhor "o cérebro de galinha".
Dadas as concepções da época, as sangrias são objeto de normas, variáveis segundo os meses. Lembramos apenas que a primavera seria a melhor época para sua execução e ainda que "maio, abril e setembro são meses lunares, não se devendo sangrar no primeiro dia de maio e no último dos outros". A sangria possuiria atributos psíquicos: "alegra os tristes, acalenta os coléricos, impede que os amantes se tornem insensatos".
Esta longa série de conselhos representa apenas trechos reduzidos do conjunto, mas já exterioriza um plano de comportamento. Apesar de suas evidentes limitações e ingenuidades constitui a oferta de um caminho para a permanência de vida sadia. E este propósito não pode ser desprezado, mesmo perante o que nos choca, o que nos surpreende, o que nos diverte.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt